Recentemente, o final da novela “Vale Tudo” impressionou a todos: Odete não morreu. A novela mostrou a personagem Odete Roitman (Debora Bloch) levando um tiro no abdômen, passando um bom tempo aguardando a “retirada do corpo”, acordando no saco e sobrevivendo após uma remoção da bala, em um “centro cirúrgico artesanal”.
Embora seja um arco dramático cativante para a TV, do ponto de vista da Medicina de Trauma, essa sequência de eventos beira o milagre — um milagre que a realidade do atendimento de emergência dificilmente permitiria. Entenda o porquê…
Por que a sobrevivência de Odete nessas condições é praticamente impossível?
1. A Regra de Ouro do Trauma: Tempo é Essencial
Um tiro no abdômen (trauma penetrante) não é um ferimento superficial. A cavidade abdominal contém uma região muito complexa: órgãos sólidos (fígado e baço), ocos (intestinos) e grandes vasos (aorta e cava).
- Risco Iminente: Choque Hipovolêmico: A principal causa de morte em tiros abdominais é a hemorragia maciça. Uma lesão em um grande vaso ou em um órgão sólido pode causar perda de litros de sangue em minutos, levando ao choque hipovolêmico. Se Odete esperou “algumas horas” pelo IML, o cenário mais provável para 99% dos pacientes seria o óbito por exsangüinação (perda total de sangue compatível com a vida) antes mesmo de ser declarada morta.

2. O Perigo Oculto: A Tríade da Morte no Trauma Grave
Além da hemorragia, pacientes com trauma grave e choque desenvolvem rapidamente um ciclo vicioso conhecido como a Tríade da Morte (ou Tríade Letal), que aumenta exponencialmente o risco de mortalidade.
- Hipotermia: A perda de sangue e a ressuscitação volêmica agressiva (com fluidos frios) levam à queda da temperatura corporal. A hipotermia prejudica as enzimas da coagulação.
- Coagulopatia: A perda dos fatores de coagulação devido à hemorragia, somada à diluição por fluidos e à hipotermia, impede que o corpo forme coágulos, levando a mais sangramento.
- Acidose Metabólica: O choque e a má perfusão dos tecidos levam à hipóxia celular. O metabolismo anaeróbio produz ácido lático em excesso, tornando o sangue ácido. A acidose, por sua vez, inibe as poucas enzimas de coagulação que restam.
O que isso significa para Odete? Após um trauma grave, se ela tivesse sobrevivido por horas e, depois, fosse submetida a um procedimento artesanal (aumentando a exposição e a hipotermia), essa tríade estaria completamente instalada. A coagulopatia e a acidose fariam com que qualquer sangramento (interno ou do procedimento) fosse incontrolável, tornando o óbito inevitável.
3. O Fator Contaminação e a Sentença de Sepse
Aqui está o maior erro médico-cirúrgico da cena: a “cirurgia artesanal” de retirada da bala.
- Peritonite e Sepse: Um tiro no abdômen tem altíssima chance de ter perfurado o intestino (órgão oco). Perfurações intestinais liberam o conteúdo bacteriano na cavidade peritoneal, podendo causar peritonite aguda (infecção e inflamação). O tratamento padrão é a laparotomia exploradora em centro cirúrgico estéril para identificação, reparo de todas as perfurações e lavagem abdominal.
- A Prática Fatal: Retirar a bala em um ambiente “artesanal” e não estéril, sem capacidade de diagnosticar e suturar as perfurações viscerais, é acelerar a sepse. A personagem, mesmo que sobrevivesse ao choque, morreria inevitavelmente de infecção generalizada poucos dias depois.

A história de Odete é divertida para a ficção, mas serve para reforçar a nossa prioridade no trauma:
- Protocolo ATLS/PHTLS: No trauma abdominal, o foco é o “Golden Hour” (Hora de Ouro): controle imediato da hemorragia e transporte rápido para o centro cirúrgico.
- Equipe Multiprofissional: O sucesso depende da sincronia perfeita entre atendimento pré-hospitalar, Emergência, Radiologia (FAST Scan) e Cirurgia.
Nosso papel é garantir que nenhum paciente fique sequer perto das condições enfrentadas pela Odete da novela. O manejo do trauma não admite improviso e muito menos espera.
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